Mello e Mataruco – Escritório de Advocacia Tributária

ICMS e justiça fiscal: os problemas de seu repasse

João Pedro Silva de Toledo

https://www.linkedin.com/pulse/icms-e-justi%25C3%25A7a-fiscal-os-problemas-de-seu-repasse-silva-de-toledo/

 

Esse artigo é o terceiro  de uma série de três textos que visam refletir e debater sobre o repasse de ICMS para os municípios.

O primeiro texto de nossa série fez uma breve recapitulação da história do sistema de arrecadação tributária e seu repasse no Brasil. Como explicado, nossa Constituição atual, na tentativa de aumentar a autonomia da política local, busca que os municípios tenham uma certa autonomia fiscal. Para isso, criou um amplo sistema de repasses de impostos a esses entes estatais. Já no segundo texto foi explicado como funciona o cálculo dos repasses de ICMS de São Paulo para seus respectivos municípios. O ator principal desse mecanismo é o índice de valor adicionado, que representa todo o ICMS que os cidadãos e empresas de uma dada cidade contribuíram, deduzidas as chamadas operações de entrada.

Foi também nesse segundo texto que se apresentou a Lei Complementar 63 de 1990. Essa norma é a grande fonte de onde emerge as regras dos repasses dos tributos estaduais aos municípios. Assim, todo estado deve se ater aos seus artigos. Nela se encontra uma norma aparentemente inofensiva, mas que pode apresentar um grande perigo à justeza do sistema de repasses. Trata-se do inciso I do §2º do artigo 3º da Lei Complementar.

De acordo com esse dispositivo, o cálculo do valor adicionado levará em conta “as operações e prestações que constituam fato gerador do imposto, mesmo quando o pagamento for antecipado ou diferido, ou quando o crédito tributário for diferido, reduzido ou excluído em virtude de isenção ou outros benefícios, incentivos ou favores fiscais”. Para os olhos mais desatentos, reitera-se: mesmo que uma atividade econômica receba isenção ou benefício fiscal de ICMS, ainda assim as operações de venda desse setor serão consideradas para o índice de valor adicionado.

Ora, esse dispositivo é totalmente incoerente. Se o valor adicionado representa o quanto de ICMS a economia de uma região pagou, e empresas com isenções e benefícios fiscais não pagam ou contribuem menos com esse imposto, então as operações dessas companhias não deveriam compor o índice de valor adicionado. Acontece que compõe, como estipulado pela referida lei.

O problema disso surge quando contextualizado na relação financeira entre os municípios. Conforme a máxima popular, quando alguém ganha, o outro tem que perder. Se muitas empresas de uma cidade possuem isenção e volumosos benefícios fiscais, elas não ajudam em nada na arrecadação do tributo estadual. Ainda assim, o município contabilizará como se estivesse arrecadando o ICMS. Tal cálculo elevará seu valor adicionado e, consequentemente, os repasses que recebera. Por outro lado, se as empresas de uma outra cidade não têm esses benefícios e isenções, então a economia desse município ajuda com a composição de ICMS, inclusive com os valores que a cidade com altas isenções receberá mesmo sem contribuir. É como quando uma família faz um churrasco dividindo entre os convidados o preço da festa, mas um deles não ajuda em nada na compra dos mantimentos e ainda come mais carne que os demais.

Uma vez que essa situação é tão escandalizadora no nível da teoria, então isso levaria a um grande alvoroço, com municípios buscando equalizar os repasses entre si. Não é isso, contudo, que se verifica na prática. Primeiramente, os dados disponibilizados pelo governo do Estado de São Paulo estão incompletos. Apesar de ser plenamente possível ver qual o valor adicionado de cada município paulista e o valor de ICMS repassado para eles [1], não há como conhecer a quantidade de exonerações fiscais no território das cidades. Em outras palavras, não se sabe quais municípios estão se beneficiando e quais estão se prejudicando com esse sistema.

Em segundo lugar, talvez o fator que mais pese para a manutenção dessa regra é sua própria justificativa. Tal previsão surgiu para a proteção dos municípios contra atos unilaterais do estado. Caso essa norma não existisse, o estado poderia, do dia para noite, isentar um determinado setor importante para um município, o que diminuiria seus repasses sem que participasse da decisão política. Foi exatamente contra isso que se formou jurisprudência do STF [2], quem definiu que o repasse de ICMS é de pleno direito dos municípios. Segundo o Tribunal, o governo do estado e sua assembleia legislativa não podem diminuir os 25% de ICMS que é próprio das municipalidades.

Para clarear o que foi dito, imagine uma cidade em São Paulo cujo valor agregado seria de 0,04%. No entanto, em decorrência de uma isenção ICMS conferida à sua principal empresa, seu valor agregado passaria para 0,03% se não existisse a regra do artigo 3º da LC 63 aqui criticada. Quando se trata de ICMS, imposto com maior arrecadação do Brasil, uma subtração de 0,01% pode representar centenas de milhares de reais não repassados. Ou seja, pode equivaler à folha de pagamento anual dos servidores públicos ou dinheiro que seria investido em obra pública que o município deixa de ter disponível.

Acredito, porém, que tal análise, a qual muitos prefeitos parecem concordar e que o STF já assentou, é limitada. Repito: esse 0,01% que seria perdido sem a norma da Lei Complementar é também dinheiro real que não compõe mais o caixa do ICMS. Com essa norma, a porcentagem se mantém fixa, mas o número absoluto de ICMS não foi arrecadado com a isenção. De algum lugar precisa sair o dinheiro para compensar esse 0,01% não perdido. E ele saí do bolso das empresas que não possuem isenção e dos repasses dos municípios onde esses empreendimentos estão localizados.

Antes de um sistema de repartição financeiro cooperativo, está-se diante de um sistema parasitário. Enquanto o primeiro serve para justificar uma política equalizadora em que as regiões brasileiras mais ricas ajudam as mais pobres a se desenvolverem, a regra analisada beneficia duplamente os municípios que recebem isenção. Primeiro que as empresas de seus territórios, com o caixa livre de impostos, poderão investir mais no negócio, gerando mais empregos e, portanto, maior desenvolvimento para a cidade. Não obstante essa clara vantagem que os benefícios fiscais conferem, não deixaram de arrecadar o repasse de ICMS que suas companhias deixaram de pagar. E mais, parasitam o valor dos repasses dos municípios onde as empresas pagaram o ICMS.

Claro que o receio de diminuição imediata do caixa em caso de concessão de isenção é factual. Apesar das críticas que aqui se teceu, esse mecanismo é sim uma proteção para prefeitos contra atos unilaterais dos governos dos estados, ainda que um escudo desarrazoado. Para a correção do problema do cálculo do valor agregado, pode-se pensar no meio termo entre os dois pontos abordados. Uma possível solução seria um período de transição, quando no seu começo não há perda de repasses, mas ao final o município deixa de receber esse dinheiro repassado. Pensando no exemplo acima, a municipalidade continuaria recebendo ICMS conforme um valor agregado de 0,04% no primeiro ano após a isenção, mas tal percentual vai gradativamente diminuindo até atingir o valor agregado real de 0,03%.

Sem dúvidas que essa proposta resolve o receio das municipalidades de perderem seus ativos de forma abrupta. Haveria um tempo razoável para adaptarem seus gastos públicos com a futura diminuição de caixa. Há, entretanto, dois problemas sobre isso. Primeiro, é evidente que isso complexaria em demasia o cálculo do valor agregado, pois, além de demandar que as prefeituras saibam os valores de isenções e benefícios fiscais em cada setor da sua economia, ainda adicionaria o fator tempo para a conta desse índice. Em segundo, essa reforma só poderia provir do legislativo federal, uma vez que necessitaria mudar as regras da Lei Complementar 63. Como já é bem conhecido, a morosidade e até mesmo a falta de interesse do Congresso Nacional é sim um fator para se colocar na balança.

Uma segunda solução pode ser colocada em prática sem passar nas mãos do Congresso. Como explicado no segundo texto, apenas 65% dos repasses devem provir do índice do valor agregado. Nada obstante, São Paulo coloca como 75% o peso do valor agregado nos cálculos dos repasses. Portanto, o estado tem uma margem de manobra de 10% para estipular uma fórmula mais equânime, sem abolir o valor agregado. Pode-se, por exemplo, estipular que 10% dos repasses devem ser calculados de forma inversamente proporcional à quantidade de isenções conferidas à economia do município. Ou ainda, em uma manobra visando melhorar o desenvolvimento dos municípios mais pobres em detrimento dos já ricos, que 10% seja inversamente proporcional ao PIB local.

Portanto, indubitável a possibilidade, com certa criatividade, de encontrar uma solução inteligente para problemas complexos. Nesse caso, foram dados alguns esboços de remédios para um defeito da LC 63. Basta apenas uma atenção maior e um interesse político para a solução dessa controvérsia. O que não se tolera é uma inércia para a desfecho desse problema, razão pela qual se espera que esta denúncia seja suficiente para alertar à sociedade sobre as injustiças dos repasses municipais.

 

[1] Através do site: https://www10.fazenda.sp.gov.br/DIPAM/ConsultaIndice/DipamFiltroConsultaIndice.aspx

[2] Ver, por exemplo, os REs 572.762 e 770.641